Em 1982, as maiores cachoeiras do mundo em volume d’água foram submersas para originar o lago da hidrelétrica de Itaipu
Há 40 anos o rio Paraná estava parecido com agora: caudaloso, de aspecto barrento, turvo. As chuvas que enchiam o rio e aceleravam as águas afogavam as Sete Quedas, calando de vez o ronco dos saltos que era ouvido a 25 quilômetros de distância.
Em 27 de outubro de 1982, 14 dias após os fechamentos das comportas, ante os dois meses previstos, o lago de Itaipu se formava para que a nova hidrelétrica, um ambicioso projeto binacional envolto em polêmicas e disputas territoriais, entrasse em operação 150 km em linha reta rio abaixo daquelas que eram as maiores cachoeiras em volume d’água do mundo.
Agora o pequeno município de Guaíra, no extremo oeste do Paraná, tenta superar o luto de quatro décadas pelo que poderia ter sido se as quedas ainda estivessem lá. O espelho é Foz do Iguaçu, que antes da construção da usina tinha uma população na faixa de 34 mil habitantes, similar à de Guaíra (30 mil em 1980). Além de cachoeiras, ambas também fazem fronteira com o Paraguai, que se tornou polo de compras de brasileiros a partir da década de 1980.
Foz do Iguaçu cresceu -em parte com a mão de obra da construção de Itaipu que ficou na cidade- e se tornou um dos principais destinos turísticos do país. Guaíra, por sua vez, estagnou. Famílias inteiras deixaram a cidade, os negócios que cresceram com o turismo da época minguaram, a população diminuiu.
Há um senso comum de que, antes de o lago ser formado, Guaíra era um esplendor turístico. Não era bem assim, conta o professor de língua portuguesa e espanhol Cristian Edgar Aguazo, 39, aficionado pela história da cidade e autoridade local no assunto.
“O fluxo de turistas começa mesmo quando as Sete Quedas iriam acabar. Aí era tarde demais”, diz.
O projeto da hidrelétrica avançou em 1979, tornando o fim iminente das quedas notícia e arrastando milhares de turistas para lá. Fotografias antigas mostram filas de carros, gente a perder de vista nas estradas e passarelas lotadas.
Tanta gente não cabia nos hotéis da cidade, e era comum moradores abrirem suas residências para receber turistas. Mas a festa acabou pouco depois de começar. Conta-se que a tristeza que tomou Guaíra era tanta que as casas passaram a ser feitas de costas para o rio.
Uma nova geração de empresários, que não viu o fim das Sete Quedas ou não tinha idade para se lembrar, porém, tenta mudar a cara da cidade.
“A cidade parou de chorar e hoje vive uma outra realidade”, diz a presidente do Conselho Municipal de Turismo e gerente de um antigo hotel da cidade, Camila Terron. “Antes, quem fazia 18 anos e podia ir para fora estudar não voltava, porque a cidade não era promissora. Agora há uma geração de empreendedores apostando em Guaíra”, afirma.
Um deles é o empresário Marcio Oliveira de Lima, 47, que após um período vivendo fora voltou a Guaíra para abrir em 2016 um bar em estilo de boteco paulistano que, segundo ele, chega a ter 500 pessoas nas noites de sexta-feira. Nos últimos anos vários restaurantes surgiram na cidade, que tem no pintado na telha o carro-chefe gastronômico.
“Guaíra passou por muitas mudanças culturais, superou o estigma do contrabando, e vai tomar o mesmo caminho de Foz do Iguaçu”, diz Lima.
“Há uma demanda turística por Guaíra, que começa a usar a história a seu favor”, diz Sara Moraes, coordenadora-técnica da Adetur, agência para o desenvolvimento do turismo da região do lago de Itaipu.
A seu favor, Guaíra tem o Parque Nacional da Ilha Grande, um arquipélago que compreende em torno de 180 ilhas e ilhotas para proteger os remanescentes de mata atlântica no único trecho corrente do rio Paraná. Abriga vária espécies de animais, como onça-pintada, ariranha, tamanduá-bandeira, cervo-do-pantanal, macacos, jacutingas, papagaio-do-peito-roxo. É considerado um santuário para a reprodução de aves e peixes.
O fluxo de turistas para o parque, no entanto, ainda é pequeno. A lagoa Saraiva, na ilha Grande, e a ilha do Frei Pacífico, de acesso livre, são mais visitadas por moradores da região do que por gente de fora. O passeio vale a pena: é possível avistar uma grande variedade de pássaros, capivaras, bandos de macacos-prego e bugios. Se tiver sorte, o turista pode ver um cervo ou jacarés, principalmente no período mais seco do ano.
O parque federal carece de estrutura para receber turistas. Para fazer a visita, é preciso procurar uma agência local ou algum guia de pesca que tope a viagem.
“Falta um plano de manejo do parque, com orientações claras do que pode e do que não pode, e infraestrutura para o visitante”, diz o secretário municipal de Turismo, Esporte e Cultura de Guaíra, Marcelo Ronnie Silva.
Uma praia formada em um banco de areia no rio, a Prainha do Sol, é frequentada pela população do entorno, que além de Guaíra contempla Mundo Novo (MS) e a cidade paraguaia de Salto del Guairá.
Nos fins de semana do verão, é comum haver música com som alto, lanchas e motos aquáticas na praia, que fica quase em frente à entrada da lagoa Saraiva. Há também ranchos de pescadores e vestígios de acampamentos, invasões que podem causar incêndios, comuns na região.
Segundo o ICMBio, responsável por gerir os parques naturais brasileiros, o plano de manejo atual permite a entrada de embarcações em parte da lagoa para visitação contemplativa. “Na porção final dela o acesso é restrito, de modo a conservar a fauna e flora aquáticas daquele trecho”, afirmou em nota.
O órgão diz que o parque engloba apenas o conjunto de ilhas e ilhotas. No rio, é permitida a pesca artesanal e profissional, desde que respeitando a legislação ambiental. Bancos de areia que formam as praias visitadas por turistas e moradores também estão fora dos limites do parque.
“Fiscalização ambiental também é exercida pelas forças policiais estaduais e, eventualmente, as federais, as quais podem ser acionadas supletivamente”, afirmou.
‘CAPITAL DA PESCA’ OFERECE CAIAQUE PELO RIO E SERÁ ZONA FRANCA
Guaíra espera que o fluxo de turistas aumente com a inauguração, no ano que vem, de um free shop, possível após regulamentação de 2018 que permitiu lojas francas em municípios que fazem fronteira com outros no exterior -nesse caso, com Salto del Guairá.
Hoje, o maior fluxo turístico da cidade paranaense é para pesca esportiva. Guaíra perdeu as Sete Quedas, mas ganhou um local único para a prática. Lá é possível pescar tanto peixes de águas rasas, já que o leito natural do rio está a cerca de cinco quilômetros acima de onde eram as Sete Quedas, quanto de lagos e águas profundas, abaixo de onde ficavam as cachoeiras.
“Guaíra vai se tornar a capital da pesca”, diz o secretário de Turismo. Porém, mesmo para essa atividade ainda enfrenta dificuldades, como a instalação de uma rampa para descida de barcos e a delimitação de onde de fato termina o curso natural do rio e onde começa o lago. O limite informal é a ponte Ayrton Senna, que liga a cidade ao Mato Grosso do Sul.
“A falta de consenso entre as leis municipais, estaduais e federais é um entrave”, diz Silva. “O órgão de uma administração libera uma obra, mas esbarra em licença de outra esfera.”
Um projeto para a construção de uma orla de quase dois quilômetros está em fase de licenças ambientais.
Para quem procura mais contato com a natureza, a Guaíra Experience, uma agência local, oferece o aquatur, um passeio de caiaque de três horas pelo rio onde é possível observar a fauna e flora locais, além de banho nas águas do Paraná. O projeto é apoiado pela Itaipu.
Para os mais aventureiros, a cidade é o destino final da Rota dos Pioneiros, trilha intermodal -caminhada, bicicleta e caiaque- que parte do Parque Estadual do Morro do Diabo, em São Paulo, pelo rio Paranapanema e depois pelo Paraná, em um trajeto total de 388,8 km. A rota segue o “Êxodo Guairenho” de 1631, quando cerca de 12 mil guaranis deixaram as missões jesuíticas em 700 embarcações fugindo dos bandeirantes paulistas.
No âmbito regional, a Adetur promove projetos para desenvolver outros municípios também banhados pelo lago de Itaipu. A ideia é que o turista que vá a Foz do Iguaçu passeie também por outras cidades, tendo Guaíra como destino final.
“Há demanda por locais para motorhomes”, conta Moraes, da Adetur. Algumas cidades, como Missal e Itaipulândia, já contam com esses espaços, diz.
Em Guaíra, os caravaneiros, como são chamados os adeptos da casa sobre rodas, podem ficar em uma área do Centro Náutico Marinas administrado pela prefeitura. Ao custo de R$ 58 por dia, têm acesso a estacionamento, banheiros e pontos de água, luz e esgoto.
ITAIPU CUIDA DE ESTRADAS PARA EVITAR ASSOREAMENTO
Com seus 1.350 km² de área alagada, o lago de Itaipu, o sétimo maior do Brasil, demanda um monitoramento constante para evitar que o assoreamento afete a produção de energia pela hidrelétrica.
A vida útil da usina é hoje estimada em 184 anos. Ariel Scheffer, superintendente de Meio Ambiente de Itaipu, afirma que cada ano perdido para o aporte de sedimentos na usina representaria de US$ 3 bilhões a US$ 4 bilhões em energia que deixaria de ser gerada para o Brasil e o Paraguai.
Os projetos da Itaipu para evitar o depósito de sedimentos na área de usina vão de reflorestamento de matas ciliares e recuperação de nascentes a adequação de estradas e orientação a produtores rurais.
Quando foi formado, o lago inundou áreas já desmatadas e que eram usadas para agricultura, portanto acabou sem mata ciliar em grande parte de suas margens. Um trabalho de plantio de árvores foi iniciado para a criação de uma faixa verde em toda a extensão e em rios que o abastecem. Até o ano passado foram plantadas 24 milhões de mudas do lado brasileiro.
No lado paraguaio, a estimativa é que outras 20 milhões de mudas tenham sido plantadas.
Hoje, a mata que circunda o lago forma o Corredor Ecológico Santa Maria, uma faixa de vegetação que conecta o Parque Nacional do Iguaçu ao Parque Nacional da Ilha Grande. Estudos já mostraram onças-pardas transitando entre os parques pelo corredor.
“Cada vez que restauramos mata ciliar, e às vezes um fragmento florestal que estava desconectado [de outros] e nós o conectamos com a beira do rio, estamos propiciando o corredor. Nós aumentamos a floresta da região, em vez de ter diminuído”, afirma Scheffer.
Um inventário recente contratado por Itaipu indicou identificou 29 espécies de aves migratórias, inclusive o bacurau-norte-americano, apenas no Refúgio Biológico Bela Vista, área vizinha à zona urbana de Foz do Iguaçu.
Uma outra pesquisa, ainda segundo Itaipu, identificou que a dispersão de sementes por morcegos no Refúgio, caso fosse feita pelo homem, custaria R$ 14 mil por dia. A Itaipu patrocina estudos como esse para avaliar se os animais presentes nas áreas de mata já são suficientes para manter a floresta em pé, a partir da disseminação natural de sementes e polinização de flores, de modo que não seja mais preciso gastar com o plantio de mudas na região.
Hoje, Itaipu tem 101 mil hectares de áreas protegidas no Brasil e no Paraguai, incluindo oito reservas e refúgios biológicos em ambos os países, que somam 45 mil hectares. O restante corresponde à faixa de proteção do reservatório.
CRONOLOGIA DAS SETE QUEDAS
1525 – O espanhol Aleixo Garcia, percorrendo os caminhos de Peabiru em direção aos Andes, faz o primeiro registro do que seria posteriormente chamado de Sete Quedas. É considerado o primeiro europeu a ingressar no território onde hoje é Guaíra (PR)
1554 – Espanhóis fundam a Ciudad Real del Guayrá, uma vila militar na foz do rio Piquiri, a cerca de 20 km em linha reta de onde eram as Sete Quedas
1631 – O padre Ruiz de Montoya, naquela que é considerada a maior fuga não militar da história, passa pela região com cerca 12 mil índios guaranis que deixaram missões jesuíticas próximas de onde hoje fica o Parque Estadual do Morro do Diabo (SP) fugindo dos ataques de bandeirantes paulistas
Década de 1880 – Fundação da Companhia Matte Laranjeira, que passa a explorar erva mate no Mato Grosso do Sul e a enviar a produção para Buenos Aires pelo rio Paraguai, cruzando o país vizinho
1902 – A empresa instala um porto logístico no local onde hoje é a cidade de Guaíra e passa a enviar a erva-mate a Buenos Aires pelo rio Paraná, para fugir das taxas impostas pelo Paraguai. O local passa a contar com água encanada, uma usina termoelétrica e casas com saneamento para os funcionários da empresa
1917 – Início da operação de um trem da companhia para transportar a produção por terra no trecho não navegável das Sete Quedas
1944 – O presidente Getúlio Vargas estatiza propriedades da Companhia Matte Laranjeira e cria o Serviço Nacional da Bacia do Prata para realizar as operações
1951 – Emancipação de Guaíra, que passa a ser município
Início dos anos 1960 – Com o declínio do ciclo do mate, o Serviço Nacional da Bacia do Prata deixa de operar
1966 – O presidente militar Castelo Branco assina o decreto autorizando a submersão das Sete Quedas para a formação da usina de Itaipu
1979 – Avanço do projeto intensifica o fluxo de turistas em Guaíra, que chega ao auge nas vésperas do fim das cachoeiras
17.jan.1982 – Desabamento de uma passarela sobre um salto das Sete Quedas mata 32 turistas
27.out.1982 – Em apenas 14 dias após o fechamento das comportas de Itaipu, a represa é formada, engolindo as Sete Quedas
5.mai.1984 – Início da operação da usina de Itaipu
Fonte: Portal Nova Santa Rosa com Folha Press